quarta-feira, 17 de setembro de 2008

Vetusto, O Vizir

Agora estou na minha cabine, sob um cobertor e com uma xícara de chá fervendo sobre a mesa. O fato de hoje foi de grande valia para esse solitário marujo. Estou neste estado por causa de uma Tormenta fabulosa que houve por aqui. Uma vela foi reduzida a farrapos e não consegui pescar absolutamente nada, mas tudo por culpa minha. A grande sorte foi que no meio da tarde alguém surgiu por aqui de turbante em uma caravela enorme de pedra. Um sujeito que, ao que me parece, viera do Oriente. Ele me ajudara muito mas eu nao sei seu nome, nem sei se voltarei a vê-lo algum dia...

Mas todo o transtorno começou com Ventos absurdamente fortes. Logo depois os mesmos diminuíram e eu pude levantar todas as velas. A Nau estava à toda tração e eu não pararia por nada. Os respingos vinham ao rosto fortemente e eu feliz da vida, pois em pouco mais de duas horas eu me deslocara mais do que a semana passada inteira.

Talvez sim, tivera sido confiança demais em pensar que os Ventos estariam constantes e não mudariam sua intensidade. O tempo fechou, o céu escureceu... começou a chuviscar... no Mar tudo acontece muito rápido, mas desta vez foi mais rápido. Os ouvidos ouviam assobios do Vento, as velas trovejavam. As rugosidades da água tornavam-se mais amplas... lentamente o ar de progresso e propulsão fora substituído por confusão e revoluções nas velas... instabilidade surgira... eu não poderia desesperar-me.

O Mar criou uma cavidade enorme a sota-Vento e lá entramos. O Navio desceu lentamente e eu vi uma muralha de água salgada ser erguida... tão logo o costado ficou suspenso da água, durou alguns segundos e, quando voltou para a água, começou a subir pelo paredão, na vertical... não pude precisar a altura daquilo, só lembro que neste momento subíamos aceleradamente rumo ao topo abrupto... conforme ocorria a subida, o Navio tombava, ficando com o mastro na horizontal totalmente e piorando... eu olhava além da ponta do mastro, a vinte e cinco metros da minha cabeça e conseguia ver o Mar e o singrado que o Barco fizera há pouco. Segurei firmemente o timão e amarrei-me a ele com uma corda pela cintura. Eu já não sentia os braços pela força que fizera e não sentia o rosto e o peito pelas salvas de água salgada... eu esperei pelo momento em que o Barco chegaria ao cume do monstruoso edifício líquido que fora criado e tive um súbito: eu teria que recolher as velas para que o Vento não voltasse a nos arrastar pela água, se é que estaríamos em pé sobre a água logo que a embarcação voltasse à posição horizontal. Mas eu sabia que eu teria que ter sorte para que o Navio, assim que ficasse flutuante sobre o ar e caindo lentamente ele poderia já tocar a água fora de prumo e inundar-se... teria que ter sorte... e o Barco subia velozmente e eu estava preso ao timão, não conseguiria chegar às cordas e recolher as velas, nem ao menos uma, a principal... soltei o timão e procurei o nó da corda na cintura, encontrei-o e desatei-o. eu não conseguia andar corretamente porque o chão estava na vertical e eu desorientado. Seria a morte deixar as velas receberem totalmente a carga Eólica. Com o punhal consegui cortar uma, duas e três cordas... deixei que as roldanas girassem livremente baixando as hastes da vela principal... a vela avançada ia forçar o mastro da frente, mas não tinha jeito; dos males, o menor... pulei no mastro e agarrei a borda da vela para puxá-la e acelerar a descida dela... eu olhei o tecido por onde minha mão passava e segurava e vi que havia Sangue nas mãos... mas não podia parar. No momento em que fiz essa reflexão, senti o corpo leve cada vez mais, os pés saíram do chão, as velas terminaram de baixar e eu vi o Navio retomar sua posição inicial, na horizontal e flutuar como se fosse um pássaro, e eu juntamente... começou a cair. A água que mal se assentara ainda estava furiosa e infernal. Houve um estrondoso impacto entre o casco e a água... eu fora arremessado diretamente de encontro ao chão violentamente... caíra de lado, protegendo a cabeça (poderia cair meu punhal sobre mim, mas o Mar o teria levado). Pelo menos o céu estava sobre a minha cabeça mais uma vez, e o mastro apontando para cima. O principal estava a apontar, mas o avançado não. Este se partira ao meio e a vela estava desgarrada dos ajustes e no decorrer do castelo ela se estirava... minha pele ardia por causa do Sol que viera e o Vento não arrastava o Barco mais.

Era hora de reparar os danos. “Haja coragem para olhar!” eu disse sozinho, desvestindo a camisa repleta de detritos que vieram com a água, pedaços de pequenas algas, cascalho, etc. Eu ainda não me aventurara a abrir os olhos para ver a realidade que devastara o meu humilde companheiro.

Quase caí de costas ao ver a catástrofe naval sobre o Convés. A superfície por onde eu ando é declive. Os modelos mais antigos não eram inclinados, mas este o é. Olhando-se o Navio de cima pode-se perceber uma linha que o divide ao meio, em bombordo e estibordo (lado esquerdo do Navio, olhando-se da popa à proa e lado direito). Esta linha imaginária passa pelo centro no Navio, desde a proa, passando pela base dos mastros, findando na popa. Desta parte central do Convés até a sua borda percebe-se uma caída. A bombordo a caída é à esquerda e a estibordo a caída é à direita, para que a água invasora não permaneça sob os pés. Desta maneira a água escoa pelas frestas laterais e escorre pelo casco voltando para o Mar.

Enquanto a água ainda saía do Navio eu via muitos equipamentos de navegação bagunçados e soltos pelo chão. Tudo estava parado. Meu rosto e meus ombros ardiam muito. Eu limpara o Sangue das mãos na camisa imprestável e molhada. Ainda esperaria retomar forças para organizar as coisas e tentar chegar a algum lugar para consertar tudo.

Nada de peixes, apenas cascalho. A fome atordoava e senti os lábios coçarem por dentro... uma pedra caíra junto a mim... espatifou-se... de onde ela viera?... do Navio ao lado.

Eu não notara a presença daquela gigantesca e monumental Caravela negra. E ela era de pedra. A cor do céu mudara, luzes vinham de dentro da cabine e da sala de navegação da Caravela. Como Ela chegara sem muitos Ventos? E as avarias da tempestade?... a quem pertenceria aquele colosso da engenharia? Aquilo desafiava as leis da natureza... um Navio feito inteiro de pedras e que flutuava. De onde viera?... havia alguém lá.

Pelo que eu podia ver era um velho homem de barbas brancas e amareladas. Não conseguia ver sua boca, as sobrancelhas perfeitamente brancas também eram largas e cobriam os olhos, que eram fundos... eu não os via, apenas uma sombra. Ele usava um turbante que, a meu ver, seria característico de um vizir, e roupas muito largas e escuras... ele deveria ser um vizir. As pontas do bigode eram espiraladas para cima: era um vizir, definitivamente.

O estrangeiro ajeitou o manto que o cobria desde o pescoço aos tornozelos e saltou de uma nau à outra. Perguntou-me sobre o que acontecera com o Navio e eu lhe respondi que eu passara pelo meio de uma tempestade e que no meio do Mar houvera um Abismo do qual escapei, mas restaram os danos no Navio. O homem rira.

- Você deveria tomar mais cuidado com essas variações meteorológicas! – ele pegara do chão o meu punhal que estava embaixo de alguns metros de corda caída.

- Pegou-me de surpresa esse Vendaval e chuva. Tornou-se uma calamidade... veja só... quebrou tudo. Preciso chegar a um porto para poder ter ajuda para tudo isso, fora as coisas que terei que comprar – eu disse abrindo os braços e lamentando tudo – Mas você não passou pela tempestade? Como chegou até aqui sem que seu Navio virasse? E todas as suas velas? Como estão cheias se não há tanto Vento para isso agora? Tem mais alguém com você?

- Perguntas demais... não, não tem mais ninguém comigo. Venho só.

Pelo tamanho da Caravela dele, eu acredito que, com mastro e tudo, o meu Navio caberia dentro da sala de navegação dele. Incrível o tamanho daquilo, e para um homem sozinho. Eu não podia acreditar. Era de pedra! As cordas eram da largura do meu pescoço. A Nau era inteira negra... eu não sabia que tipo de Navio era aquele, mas eu estava com medo de perguntar. Para mim era uma Caravela de pedra. E todo o Barco era limpo e impecável, com todas as coisas simétricas e organizadas... fiquei admirado com aquilo.

- Como é seu nome? Você é do Oriente?

- Chame-me de Vetusto e eu vim do Oriente sim, mas há muito tempo, muito tempo. Eu gostaria de ajudar você a se recuperar da sua fraqueza, depois você conserta sua embarcação. Pode ser?

- Pode ser sim, por favor!

Após isso, juro que não me lembro de mais nada. Lembro-me apenas do momento em que eu saltei do meu Navio para o dele e, num piscar de olhos eu, sentado em uma banqueta na cabine dele tomando um elixir, senti-me ótimo e levantei-me, mas ainda a ter a pele ardendo, mas não tinha mais fome. Do Navio dele eu via que o Vento era forte o suficiente para encher as velas. Não entendi, pois o meu continuava parado e, de algum jeito, ambos estavam singrando juntos, mas o meu sem Vento. Não me lembro de mais nada...

O próximo momento foi quando eu voltei para o meu Barco. Voltei e vi que tudo estava limpo, consertado e novo... como? Eu não conseguia pensar! Fora rápido demais... ele me dera alguma droga, com certeza... mas não, ele não fizera isso. Fora sono mesmo e cansaço. Ele tinha me dito que eu dormira algumas horas e nesse intervalo ele consertara o meu Vaso Marítimo. Como ele fizera aquilo eu não sei até agora, mas compreendo que me foi passada uma idéia muito interessante. Ele deixou comigo um livreto que até agora não li. Ele também disse uma frase muito importante sobre tomar cuidado sempre. Vez após vez, alguma coisa é diferente por mais experientes que sejamos. No Mar, devemos estar o tempo todo preparados para surpresas. O destino tem suas mãos muito rápidas.


Como ele mesmo dissera:


O Destino é um gorila enjaulado,

Zomba dele, ri dele, faze-o piada,

E ele jogará estrume e pedras em ti.

(Vetusto, O Vizir)

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